A Doutrina da Eleição na História da Igreja
Cristianismo

A Doutrina da Eleição na História da Igreja



Por Ronaldo Guedes Beserra

Deus predestina os eleitos para a salvação com base única e exclusivamente em sua soberania, a despeito de sua presciência, ou Deus predestina os eleitos para a salvação com base em sua presciência? Deus elegeu os salvos unicamente conforme a sua soberana vontade, independentemente de em sua presciência já saber quem responderia afirmativamente ao convite do evangelho, ou Ele elegeu os salvos baseado no fato de que, por sua presciência, conhecendo de antemão àqueles que responderiam afirmativamente ao evangelho, a estes elegeu, a estes predestinou? O que a história da teologia nos diz a respeito deste assunto? O que pensaram sobre essas questões os primeiros pensadores da igreja, os chamados pais da igreja? Como pensavam a respeito dessas questões os Reformadores? Responder a estas interrogações é o objetivo desta pesquisa.

OS PAIS DA IGREJA

Os primeiros pais da igreja, embora aparentemente não haviam ainda mergulhado profundamente nesta discussão teológica, acreditavam no fato de que, baseado em sua presciência, Deus determinava o futuro dos homens. Louis Berkhof em sua Teologia Sistemática fala sobre o assunto:

A predestinação não constitui um importante assunto de discussão na história até o tempo de Agostinho. Os primeiros pais da igreja, assim chamados, aludem a ela, mas em termos que fazem pensar que não tinham ainda uma clara concepção do assunto. Em geral a consideravam como a presciência de Deus com referência aos atos humanos, baseado na qual Ele determina o seu destino futuro. (BERKHOF, 1992, p. 110).

Os que hoje defendem que a predestinação de Deus está baseada unicamente em sua soberania, a despeito de sua presciência, são chamados de calvinistas ou calvinistas extremados. Um dos assim chamados cinco pontos do Calvinismo é conhecido como “graça irresistível”, ou seja, aqueles a quem Deus por sua soberania elegeu para a salvação não podem resistir à graça de Deus, não podem resistir à salvação que lhes foi predeterminada desde antes da fundação do mundo. Para os arminiamos, que fazem o contra-ponto ao calvinismo (e também para alguns assim chamados calvinistas moderados), este ponto do calvinismo anula o livre-arbítrio do homem, ou seja, sua liberdade de optar ou não pela salvação que Deus, em Cristo, oferece ao ser humano. Temos então dois pólos da discussão teológica que surgiu na história da teologia: (1) o homem é livre para fazer suas escolhas; aquilo que Deus determina, Ele o faz baseado em sua presciência; e (2) o homem não tem total liberdade de escolha e, portanto sua salvação e seu futuro está totalmente determinado por Deus com base em sua soberania.[1]Normam Geisler, em seu livro Eleitos, mas livres dedica todo um capítulo para mostrar o que os pais da igreja disseram sobre o assunto da eleição e livre-arbítrio, e concorda com o fato de que praticamente todos eles (os pais da igreja) acreditavam que Deus determina o futuro baseado em sua presciência da escolha ou da liberdade de escolha de cada um. Geisler introduz as citações dos pais da igreja sobre eleição divina e livre-arbítrio humano da seguinte forma:

Com exceção dos escritos dos últimos anos de Agostinho, que após sua experiência na controvérsia donatista concluiu que as pessoas podiam ser forçadas a crer, quase todos os grandes pensadores até a Reforma afirmaram que o ser humano tem o direito de escolher o contrário, mesmo no estado caído. Ninguém cria que um ato coagido é um ato livre. Em resumo, todos teriam rejeitado o pensamento do calvinismo extremado de que Deus age irresistivelmente sobre quem não quer. (GEISLER, 2005, P. 170).

Geisler faz uma citação do que Justino Mártir (100-165 D.C.) fala sobre livre-arbítrio (Dialogue, CXLI) e de como ele entendia a punição de Deus sobre os ímpios (anjos ou homens) com base na presciência divina:

Deus, no desejo de que homens e anjos seguissem sua vontade, resolveu criá-los livres para praticar a retidão. Se a Palavra de Deus prediz que alguns anjos e homens certamente serão punidos, isso é porque ela sabia de antemão que eles seriam imutavelmente ímpios, mas não porque Deus os criou assim. De forma que quem quiser, arrependendo-se, pode obter misericórdia (GEISLER, 2005, p. 170).

Geisler cita ainda algumas palavras de outro Pai da Igreja, Ireneu (130-200 D.C.), que também falou sobre o livre-arbítrio do homem (Contra as heresias, IV, 37.1,4):

A expressão “Quantas vezes eu quis reunir os seus filhos […] mas vocês não quiseram” ilustra bem a antiga lei da liberdade do homem, porque Deus o fez livre desde o início, com vontade e alma para consentir nos desejos de Deus sem ser coagido por ele. Deus não faz violência, e o bom conselho o assiste sempre, por isso dá o bom conselho a todos, mas também dá ao homem o poder de escolha, como o tinha dado aos anjos […] Sendo, porém, o homem livre na sua vontade, desde o princípio, e livre é Deus, à semelhança do qual foi feito, foi-lhe dado, desde sempre, o conselho de se ater ao bem, o que se realiza pela obediência a Deus (GEISLER, 2005, p. 171).

Geisler cita também Tertuliano (155-225), conforme registrado nos escritos deste pai da igreja conhecidos como Contra Marcião (2.5):

Eu acho, então, que o ser humano foi feito livre por Deus, senhor de sua própria vontade e poder; indicando a presença da imagem de Deus e a semelhança com ele […] o ser humano é livre, com vontade ou para a obediência ou para a resistência […] tanto a bondade quanto o propósito de Deus são descobertos no dom da liberdade em sua vontade dado ao ser humano (GEISLER, 2005, p. 173).

Geisler cita também Orígenes (C. 185-254), falando sobre o tema do livre-arbítrio humano em seus escritos intitulados De Principiis:

Isso também é claramente definido no ensino da Igreja de que cada alma racional é dotada de livre-arbítrio e volição […] Há, de fato, inúmeras passagens nas Escrituras que estabelecem com extrema clareza a existência da liberdade da vontade (GEISLER, 2005, p. 173, 174).

PELÁGIO

Um pensador do quarto século d.C., cujo nome era Pelágio (354-418), foi um dos defensores da liberdade de escolha do ser humano. Ele defendeu a salvação do homem baseada na presciência que Deus tem desta liberdade de escolha da espécie humana. Berkhof citando Wiggers, nos informa que “Segundo Pelágio, a predeterminação da salvação ou condenação, funda-se na presciência. Conseqüentemente, ele não admitia uma ‘predestinação absoluta’, mas, em todos os aspectos, uma ‘predestinação condicional’” (BERKHOF, 1992, p. 110). Em seu livro Deus é brasileiro: as brasilidades e o reino de Deus, Jorge Pinheiro faz uma descrição da visão e teologia de Pelágio em relação a vários aspectos. Pinheiro o chama de “arauto da liberdade” e, em relação ao assunto em estudo nesta dissertação nos diz o seguinte a respeito de Pelágio:

As reflexões de Pelágio […] consideravam existir uma bondade inata na natureza humana, fruto da imago Dei. Por isso, dirá que podemos inferir a bondade do ser humano a partir do amor do Criador. Isto porque Deus transmitiu à humanidade na criação os atributos da liberdade, que possibilitam a livre escolha e o domínio próprio. Deus desejaria para o ser humano a liberdade de ação e não a ação sob coerção. Por esta razão, deixou-o livre para fazer suas próprias decisões e para escolher entre a vida e a morte, entre o bem e o mal, e viver conforme lhe parecesse melhor” (PINHEIRO, 2008, p. 19, 20).

Pinheiro ainda faz referência a uma visita que Pelágio fez a Roma, quando ficou escandalizado com o luxo no qual viviam os sacerdotes da igreja romana, o que prontamente criticou por estar em desacordo com o que acreditava e com as práticas de ascetismo praticadas por ele e outros que compartilhavam de sua maneira de pensar. Pinheiro nos diz que Pelágio “obteve como resposta, a partir de citação das Confissões de Agostinho, que Deus em sua vontade determina uns para o luxo e outros para a abstinência” (PINHEIRO, 2008, p. 21). No trabalho de Pinheiro, ainda encontramos uma citação sobre o pensamento de Pelágio, o qual discordou fortemente das idéias de Agostinho:

Pelágio não acreditava que a natureza humana estivesse degenerada pela alienação de Adão. Defendia que eram os atos que levavam o ser humano a herdar a danação. E discordou de Agostinho quando este afirmou que o ser humano só poderia ganhar a salvação através da igreja. Considerou a doutrina do pecado original sem base neotestamentária e afirmou que todos são concebidos sem pecado e, diante de seus delitos, são salvos pela graça de Deus, que ninguém merece e que é entregue através de Cristo e sua igreja. Até aquele momento, a visão de Pelágio e de seus seguidores traduziam a filosofia cristã do livre arbítrio humano e de que a maldade presente na natureza humana não tinha caráter degenerativo (PINHEIRO, 2008, p. 21).

AGOSTINHO

Agostinho, por sua vez, atacou fortemente as idéias de Pelágio, embora em sua juventude tinha uma posição mais próxima às idéias pelagianas, ou seja, que a predestinação dependia da presciência divina das ações humanas Com o passar do tempo, todavia, mudou sua maneira de pensar.[2] O jovem Agostinho pensava como os pais da Igreja que foram seus antecessores no desenvolvimento do pensamento cristão. Geisler diz que “desde o começo, Agostinho seguiu os ensinos dos pais da Igreja que vieram antes dele”, os quais, conforme Geisler continua dizendo, pensavam que “o ser humano, mesmo caído, possui o poder da livre-escolha” (GEISLER, 2005, p. 191). Para demonstrar a mudança ocorrida no pensamento de Agostinho “jovem”, para Agostinho “mais velho”, Geisler chama a atenção para os seguintes fatos:

Nos seus escritos antipelagianos anteriores, por sua vez, Agostinho nunca adotara a posição radical sobre o livre-arbítrio e a expiação limitada que ele acabou manifestando em seus escritos posteriores, particularmente depois de 417. O endurecimento das artérias teológicas de Agostinho é manifesto em diversas áreas. Em sua visão anterior, igual à que foi sustentada por todos os pais ao longo de toda a história da Igreja até Lutero, ele abraçou a expiação ilimitada; posteriormente, afirmou a expiação limitada. No período anterior, ele sustentava que Deus nunca coage um ato livre; isso foi descartado em favor da graça irresistível sobre o que não quer, nos últimos anos de sua vida. Isso, naturalmente, resultou no endurecimento de sua visão da predestinação, em que Deus foi ativo tanto no destino do eleito quanto no do não-eleito, e na negação de que há condições para se receber o dom da salvação incondicional de Deus. De fato, para o Agostinho mais velho, em contraste com o Agostinho mais jovem, a raça humana está tão depravada que não tem livre-escolha em relação às coisas espirituais” (GEISLER, 2005, p. 190).

Segundo Roger Olson, em sua obra História da Teologia Cristã, “toda a soteriologia de Agostinho decorre de duas crenças principais: a absoluta e total depravação dos seres humanos depois da queda e o poder e a soberania absoluta e total de Deus” (OLSON, 2001, p. 275). No sistema teológico de Agostinho, a vontade humana sempre pende para o pecado, portanto, além de a natureza humana estar escrava do pecado, sem o auxílio da graça divina o homem não tem capacidade nem mesmo para buscar a Deus. Como conseqüência, a redenção do ser humano se dá apenas por causa da eleição livre e incondicional de Deus. Para Agostinho, para que a graça de Deus aos pecadores seja imerecida, tem de ser necessariamente livre e soberana. Por isso, Deus elege pecadores, na eternidade, não com base em sua presciência de suas obras ou de sua fé, mas com base em sua soberania. Segundo Agostinho, esta graça livre e soberana é também irresistível aos eleitos, e até mesmo a fé que a pessoa tem em Cristo não é mérito pessoal, mas sim um dom de Deus.[3]

Em sua História do Pensamento Cristão, Paul Tillich, ao expor a teologia de Agostinho sobre vários assuntos, comenta a respeito do que este grande teólogo pensava em relação ao assunto tratado nesta dissertação:

O homem perdeu a possibilidade de se voltar para o bem supremo por causa de sua pecaminosidade universal. Estamos sob a lei da escravidão vista no aprisionamento da vontade. Portanto, a graça é, antes de tudo, gratia data, graça dada sem qualquer mérito. Dada por Deus a um certo número de pessoas que não pode ser aumentado nem diminuído; essas pessoas pertencem a Deus eternamente. O resto da humanidade é abandonado à condenação que merece. Não há qualquer razão no homem para a predestinação de alguns ou para a rejeição de outros. A razão está apenas em Deus; é um mistério. Assim, não se pode falar de pré-ciência ou de previsão do que o homem haverá de fazer […] “Ele nos elegeu não porque pudéssemos ser santos, mas para nos fazer santos”. Não há razão alguma no homem para a predestinação. Deus realiza tanto o querer como a plenitude desse querer. (TILLICH, 2007, p. 140, 141).

Como parte de seu sistema teológico, e em conseqüência dos pontos enfatizados acima, Agostinho acreditava também na perseverança dos eleitos. Tillich escreve o seguinte, traduzindo o pensamento de Agostinho: “Os predestinados não podem recair. Recebem o dom da perseverança que lhes impede de perder a graça uma vez recebida. Nada disso depende de mérito” (TILLICH, 2007, p. 141).

Agostinho ensinava a dupla predestinação, ou seja, tanto os eleitos como os reprovados são objetos da predestinação divina, embora em alguns de seus textos ele fala dos reprovados como objeto da presciência de Deus.[4]

SEMIPELAGIANISMO

Na tentativa de se estabelecer uma síntese entre o pensamento de Pelágio e Agostinho, surgiu outra corrente teológica denominada semipelagianismo. “Os semipelagianos, embora admitindo a necessidade da graça divina para a salvação, reafirmavam a doutrina de uma predestinação baseada na presciência”, afirma Berkhof, que continua dizendo ainda que os semipelagianos “não faziam justiça à doutrina da dupla predestinação” (BERKHOF, 1992, p. 111).

Bengt Hagglund, em sua História da Teologia, chama a atenção para o fato de que “os semipelagianos acreditavam que se poderia evitar a heresia pelagiana sem fazer uso das idéias extremadas inerentes à doutrina da graça de Agostinho” (HAGGLUND, 1986, p. 120). João Cassiano, em meados do século V, foi o principal representante da posição semipelagiana, e como tal, acreditava que “Deus não deseja a condenação de qualquer homem. Quando isto acontece, é feito contra a sua vontade” (HAGGLUND, 1986, p. 120).

[…] Cassiano, enquanto aceitava o conceito de pecado original de Agostinho, rejeitava a idéia da onipotência da graça. Por outro lado, acreditava que a conversão e a regeneração resultam da cooperação da graça e do livre-arbítrio. A rejeição não encontra sua origem na vontade de Deus (HAGGLUND, 1986, p. 120).

Os semipelagianos, conforme asseveram Ferreira e Myatt, não acreditavam na negação do livre-arbítrio como Agostinho acreditava, ou seja, eles afirmavam o livre-arbítrio humano. Eles não aceitavam também a graça irresistível e não criam na imputação do pecado original a todos os homens por ocasião da queda, embora acreditassem que a raça humana recebeu uma herança maldita por causa do pecado, e não obstante a isso, o homem ainda tem o poder de se voltar para o Criador e se envolver na prática de boas obras. A fé não foi ensinada como dom de Deus pelos semipelagianos, mas foi descrita como um produto da própria pessoa. Para os semipelagianos a graça poderia ser resistida e a perseverança do crente não é garantida pela soberania divina, mas é dependente da vontade da pessoa.[5]

CATOLICISMO ROMANO

Tanto Berkhof, como Ferreira e Myatt, em seus respectivos trabalhos (ambos denominados Teologia Sistemática), procuram traçar uma visão da doutrina da eleição ou predestinação no decorrer da história da igreja e da teologia, e as duas obras trazem informações sobre o pensamento do Catolicismo Romano a respeito do tema de pesquisa desta dissertação. Vejamos inicialmente o que nos diz Berkhof:

Nos fins da Idade Média, ficou bem evidente que a Igreja Católica Romana admitiria ampla latitude quanto à doutrina da predestinação. Conquanto os seus mestres sustentassem que Deus queria a salvação de todos os homens, e não apenas dos eleitos, podiam igualmente, com Tomaz de Aquino, mover-se na direção do agostinianismo, quanto à predestinação, ou, com Molina, seguir o curso do semipelagianismo, como melhor lhes parecesse. Significa que, mesmo no caso daqueles que, como Tomaz de Aquino, criam na dupla e absoluta predestinação, esta doutrina não podia ser desenvolvida coerentemente e não podia ser posta como fator determinativo do restante da sua teologia (BERKHOF, 1992, p. 111).

Ferreira e Myatt também trazem um parágrafo bastante esclarecedor sobre o pensamento Católico Romano a respeito da doutrina da eleição, conforme reproduzido abaixo:

Segundo a teologia católica, o livre-arbítrio do ser humano foi enfraquecido na queda, mas não totalmente incapacitado. Por causa do livre-arbítrio, a pessoa tem pleno poder de cooperar, contribuindo com a sua parte, e assim cumprir com as condições de salvação ou mesmo recusá-la. A implicação é que Deus não escolheu ou elegeu as pessoas para serem salvas. No fim, tudo depende da resposta da própria pessoa. Não há um grupo que tenha sido predestinado para a salvação e outro que permaneceu em seu pecado. O livre-arbítrio da pessoa, então, é a palavra final para determinar quem será salvo ou não. Se a pessoa não se preparar, ela não pode receber a graça de Deus (FERREIRA & MYATT, 2007, p. 713).

REFORMADORES

Segundo Berkhof, “todos os reformadores do século dezesseis defenderam a mais estrita doutrina da predestinação” (BERKHOF, 1992, P. 111). Dois dos maiores nomes entre os reformadores e que se manifestaram a respeito desta doutrina da eleição, foram Lutero e Calvino. Para Lutero, após a queda, o ser humano havia perdido completamente a liberdade de escolha com relação à salvação, estando desta forma cativo pelo diabo e completamente corrompido pelo pecado. Lutero ensinou a predestinação individual, dupla e absoluta, pois para ele, em função de o ser humano já nascer escravizado pelo pecado, não tem nenhuma boa predisposição para com o evangelho e para com Deus. Na teologia de Lutero, em relação à salvação, toda a glória deve ser rendida somente a Deus, pois a salvação não pode ser alcançada mediante boas obras ou alicerçada em méritos humanos.[6] Nos seus últimos anos de vida, Lutero abrandou um pouco suas convicções quanto à doutrina da predestinação, em função da declaração bíblica de que Deus “deseja que todos os homens se salvem, e venham ao conhecimento da verdade” (1 Timóteo 2.4),[7] tanto que na ortodoxia luterana posterior, desenvolvida principalmente no século XVII, pensava-se da seguinte forma:

A ortodoxia luterana […] dizia […] que a predestinação, ou eleição, só se refere aos que chegam a crer em Cristo e que permanecem nesta fé até o fim. Deus os escolheu para a vida eterna em Cristo antes da criação do mundo. Por outro lado, a condenação se refere aos que persistem na descrença e impenitência até o fim. Estes recebem o justo juízo da morte eterna. Isto também se baseia sobre um “decreto” eterno. Mas nenhum destes decretos é incondicional: a eleição é concretizada por causa de Cristo e se baseia no fato de que Deus prevê quem permanecerá fiel até o fim (ex praevisa fide). A condenação, por sua vez, se baseia no fato que Deus prevê quem permanecerá impenitente até o fim (HAGGLUND, 1986, p. 272, 273).

Quanto a Calvino, pode-se afirmar que ele “sustentou firmemente a doutrina agostiniana da predestinação dupla e absoluta” (BERKHOF, 1992, p. 111). Ele fazia uma analogia entre o curso do mundo e a salvação eterna. Da mesma forma como todo curso da história do mundo está debaixo da providência de Deus, assim também depende da vontade soberana e predestinação de Deus a salvação ou condenação de cada um dos seres humanos. Para Calvino, tudo visava à glorificação total de Deus, mesmo a punição e a condenação eterna dos maus. Calvino cria em uma natureza oculta de Deus, que era sua explicação para o fato de que embora Deus não seja a origem do mal, Ele o emprega de maneira secreta e inescrutável. Calvino afirmava que, mesmo diante da rejeição de alguém por parte de Deus, Ele permanece justo, sendo que a justiça divina é inescrutável, impenetrável à mente humana quando esta tenta entender o fato de Deus rejeitar alguém eternamente. Para Calvino, a salvação tem como base um decreto eterno de Deus e, portanto, não se baseia em algo que o homem possa fazer para alcançá-la. A salvação é somente pela graça e a dupla predestinação é a garantia final desta salvação.[8]

Assim com Lutero, Calvino vislumbrou um aparente conflito entre os textos bíblicos de 1 Timóteo 2.3,4 e 2 Pedro 3.9 e a doutrina da predestinação dupla defendida por ele. Na busca de uma solução para o problema, Calvino elaborou o ensino da vontade revelada e da vontade secreta de Deus. A todos aqueles que se arrependem e crêem, a vontade revelada de Deus oferece perdão e misericórdia; já a vontade secreta de Deus, predestina alguns à perdição eterna e determina que eles pecarão e nunca se arrependerão.[9]

Calvino ensinou a doutrina da predestinação como absoluta, particular e dupla. Absoluta, conforme explicam Ferreira e Myatt, “no sentido de que não está condicionada a nenhuma contingência finita, mas baseia-se somente na vontade imutável de Deus”. Explicam também que a predestinação segundo Lutero é particular “no sentido de que pertence a indivíduos e não a grupos de pessoas. A eleição da graça aplica-se a cada pessoa individualmente”. Quanto a ser dupla, explicam que “Deus, para o louvor da sua misericórdia, ordenou alguns indivíduos para a vida eterna, e para o louvor da sua justiça enviou outros para a condenação eterna” (FERREIRA & MYATT, 2007, p. 715). Paul Tillich, em sua obra História do pensamento cristão, em sua explicação sobre a doutrina da predestinação ensinada por Calvino, faz alguns comentários pertinentes, e faz também algumas interessantes citações do próprio Calvino:

O próprio Calvino sentia o aspecto terrível dessa doutrina. “Fico me perguntando muitas vezes como é que a queda de Adão, independente de qualquer remédio, envolveu tantas nações arrastando até crianças à morte eterna, apenas por causa da vontade de Deus […] trata-se de um decreto horrível, confesso!” Contudo, ao ser atacado, especialmente nos últimos anos de sua vida – em face da morte – sua resposta era um pouco diferente: “Sua perdição depende da predestinação divina, de tal maneira, que a causa e a matéria dessa perdição se acham neles próprios”. A causa imediata, portanto, passa a ser a livre vontade do ser humano. Como Lutero, Calvino estava pensando em dois níveis. A causa divina não é realmente uma causa, mas um decreto, algo misterioso, para o qual a categoria da causalidade emprega-se apenas simbolicamente e não em sentido literal. Além disso Calvino sabia, como os outros reformadores e todos os adeptos da doutrina da predestinação, que quando Deus decreta a predestinação, o faz por meio da liberdade finita do homem (TILLICH, 2007, p. 265).

Hagglund declara que “foi Teodoro Beza quem perpetuou a tradição calvinista pura. Beza desenvolveu a doutrina da predestinação mesmo mais rigidamente que Calvino e lhe conferiu posição mais central ainda em sua cosmovisão” (HAGGLUND, 1986, p. 229). Conforme nos informa Alister E. McGrath em sua obra Teologia sistemática, histórica e filosófica, Teodoro Beza em sua sistematização teológica, utilizou como ponto de partida “seu sistema nos decretos divinos da eleição – isto é, na decisão divina de eleger certas pessoas para a salvação, e outras para a condenação. Todo o restante de sua teologia se preocupa com a investigação das conseqüências dessas decisões”. Conforme McGrath enfatiza também, na teologia desenvolvida por Teodoro Beza, “a doutrina de predestinação assume a posição de um princípio determinante” (McGRATH, 2005, p. 534). Como reação à doutrina calvinista da predestinação surgiu um movimento teológico denominado arminianismo, liderado por Jacobus Armínius. Para tratar da crescente oposição à doutrina calvinista da predestinação reuniu-se o Sínodo de Dort.[10] Por ocasião do Sínodo de Dort, a soteriologia reformada, ou seja, o entendimento da salvação associada aos escritores calvinistas, desenvolveu os assim chamados “cinco pontos do calvinismo”, os quais são os seguintes: (1) Depravação total da natureza pecadora do ser humano; (2) Eleição incondicional, pois os seres humanos não são predestinados com base em aspectos previstos, como algum mérito, qualidade ou conquista; (3) Expiação limitada, pois Cristo morreu somente pelos eleitos; (4) Graça irresistível, pela qual os eleitos são inevitavelmente chamados e redimidos; (5) Perseverança dos santos, pelo fato de que aqueles que são verdadeiramente predestinados por Deus não podem de maneira nenhuma abandonar esse chamado.[11]

ARMINIANISMO

Os assim chamados “cinco pontos do calvinismo” foram elaborados no Sínodo de Dort, em 1618, como reação aos cinco pontos do arminianismo, apresentados em uma representação chamada Articuli Arminiani sive Remonstrantia, também conhecido comoManifesto Remonstrance de 1610. Neste manifesto, após a morte de Arminius, dois de seus colegas e sucessores, Johannes Uytenbogaert e Simon Episcopus, definiram os termos da discussão em relação à doutrina calvinista da eleição.[12] Os cinco pontos apresentados pelos sucessores de Arminius, conforme descritos por Ferreira e Myatt, são os seguintes: (1) A realização do decreto de Deus de salvar pecadores é condicionada à perseverança na fé e na obediência daqueles que crerão em Jesus. A eleição está baseada na presciência que Deus tem daqueles que responderão ao evangelho, em fé e obediência; (2) Cristo morreu por todos no mesmo sentido, isto é, a expiação de Cristo foi feita com a intenção de dar oportunidade da salvação a todos; (3) Os arminianos, originalmente entenderam que a queda afetou totalmente o ser humano, e por isso, o homem necessita da regeneração para ser salvo. Posteriormente, esta posição foi modificada, e os arminianos passaram a afirmar que a queda afetou seriamente o ser humano, mas não deixou o homem num estado de total incapacidade; (4) Já que, para os arminianos, a vontade de Deus é que todos os homens sejam salvos, então, o ser humano é livre para resistir e rejeitar a graça e o plano de Deus; (5) Ainda que afirmassem alguma forma de segurança cristã, os arminianos sugeriram que, mesmo que tenha rendido a vida a Deus e recebido a Cristo como salvador, a pessoa pode ainda resistir ao Espírito Santo e apostatar da fé, perdendo assim sua salvação.[13]

Conforme argumenta McGrath, os arminianos preservaram a idéia da predestinação, embora tenham alterado radicalmente o seu referencial. O Sínodo de Dort entendeu a predestinação como uma questão individual, enquanto que os arminianos entenderam-na de forma coletiva. Para os arminianos, Deus não predestinou ou elegeu indivíduos, mas predestinou o grupo específico de pessoas que seria salvo, ou seja, aqueles que crêem em Jesus Cristo.[14] McGrath também informa que “o arminianismo logo alcançou uma posição relevante em meio ao evangelicalismo do século XVIII. Apesar das perspectivas mais calvinistas de George Whitefield, as idéias arminianas foram vigorosamente afirmadas no meio metodista por Charles Wesley (1707-1788)” (McGRATH, 2005, p. 535). Outro teólogo protestante identificado como arminiano, foi John Wesley, que embora contestasse como rótulo sem sentido a designação de arminianos e calvinistas, quando foi acusado de ser um arminiano, concordou prontamente com esta acusação.[15]

KARL BARTH

Segundo o entendimento de Hagglund, Berkhof, McGrath, Grenz, Olson, Ferreira e Myatt, o teólogo contemporâneo Karl Barth, trouxe uma nova contribuição para a doutrina da predestinação na história. McGrath enfatiza que “o tratamento que Barth dispensou à doutrina reformada da predestinação é particularmente interessante, pois demonstra o modo como ele consegue lançar mão de termos tradicionais e atribuir-lhes um novo significado, no contexto de sua própria teologia” (McGRATH, 2005, p. 536).

Berkhof escreve que a elaboração da doutrina da predestinação feita por Barth, “nem de longe se relaciona com a de Agostinho e Calvino”. Berkhof salienta também que Barth “sustenta que esta doutrina acentua a soberana liberdade de Deus em Sua eleição […] Ao mesmo tempo, não vê na predestinação uma predeterminada separação feita entre os homens, e não entende a eleição como uma eleição particular” (BERKHOF, 1992, p. 112). No pensamento de Barth a respeito da doutrina da predestinação, o único homem eleito e rejeitado é Jesus Cristo, de forma que nele estão incluídos e por ele são representados todos os seres humanos. Para Barth, nenhum decreto terrível de predestinação dupla divide a humanidade em salva e maldita, pois Jesus Cristo é o único objeto da eleição e da maldição de Deus.[16]

[…] todos estão incluídos em Jesus Cristo, que é tanto o Deus que elege como o ser humano eleito por ele, e os benefícios de sua obra salvadora estendem-se sobre todos eles. É somente ele quem sofre a rejeição de Deus e, obviamente, isso é Deus rejeitando a si mesmo: “na eleição de Jesus Cristo, que é a vontade eterna de Deus, Deus oferece ao homem […] eleição, salvação e vida; e a Si mesmo designa […] rejeição, perdição e morte”. Assim, para Barth, a predestinação significa que, desde a eternidade, Deus decidiu absorver a humanidade a um alto preço para si mesmo (GRENZ & OLSON, 2003, p. 87).

Conforme McGrath argumenta, “Barth elimina qualquer idéia de uma ‘predestinação para a condenação’ em relação à humanidade. O único que é predestinado à condenação é Jesus Cristo que ‘desde toda a eternidade escolheu sofrer por nós’” (McGRATH, 2005, p. 537). A morte e a ressurreição de Cristo parecem ser bastante importantes nesse sistema teológico de Barth a respeito da doutrina da predestinação, no qual Cristo é o eleito e o rejeitado de Deus Pai. Hagglund destaca que “Barth encara a morte e a ressurreição de Jesus como analogia ao processo eterno de Deus rejeitar e escolher o Filho […] A rejeição de Cristo por parte de Deus Pai não é tornada clara até o momento de sua morte, enquanto que a ressurreição retrata sua eleição eterna” (HAGGLUND, 1986, p. 348). Tem existido uma questão em torno da teologia barthiana, que se relaciona com seu entendimento da doutrina da eleição, que é a questão se Barth teria ou não ensinado o universalismo. Quanto a esta questão, conforme afirmam Grenz e Olson, “Barth recusou-se a dar uma resposta direta: ‘Não é isso que ensino, mas também não é isso que não ensino!’” (GRENZ & OLSON, 2003, p. 87). Hagglund opina sobre esta questão da seguinte forma: “A cristologia de Barth, finalmente, resulta, pois, em uma espécie de doutrina especulativa de salvação universal” (HAGGLUND, 1986, p. 348). Olson nos diz que “Barth admitiu a possibilidade de que a ‘contagem’ final dos eleitos talvez não inclua inteiramente todos os seres humanos existentes no mundo, mas ao mesmo tempo descartou qualquer limitação da salvação final. A liberdade e o amor de Deus exigem que as possibilidades fiquem em aberto” (OLSON, 2001, p. 601). Já para McGrath, as conseqüências da abordagem da doutrina da predestinação conforme entendida por Barth são claras:

Embora todas as aparências indiquem o contrário, a humanidade não pode ser condenada. No final, a graça triunfará, até mesmo sobre a descrença. A doutrina da predestinação de Barth elimina a possibilidade de rejeição da humanidade. Pelo fato de Cristo haver suportado a pena e a dor da rejeição de Deus, isso não mais caberá à humanidade. Aliada a sua ênfase característica sobre o “triunfo da graça”, a doutrina da predestinação de Barth aponta para a restauração e salvação universal da humanidade (McGRATH, 2005, p. 537).

BIBLIOGRAFIA

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[1] GEISLER, Norman. Eleitos, mas livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. 2. ed. São Paulo: Editora Vida, 2005, p. 11-62.

[2] BERKHOF, Louis. Teologia sistemática. 2. ed. Campinas: Luz Para o Caminho Publicações, 1992, p. 110.

[3] FERREIRA, Franklin & MYATT, Alan. Teologia sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual. São Paulo: Vida Nova, 2007, p. 710.

[4] BERKHOF, Louis. Teologia sistemática. 2. ed. Campinas: Luz Para o Caminho Publicações, 1992, p. 110.

[5] FERREIRA, Franklin & MYATT, Alan. Teologia sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual. São Paulo: Vida Nova, 2007, p. 711, 712.

[6] FERREIRA, Franklin & MYATT, Alan. Teologia sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual. São Paulo: Vida Nova, 2007, p. 713.

[7] BERKHOF, Louis. Teologia sistemática. 2. ed. Campinas: Luz Para o Caminho Publicações, 1992, p. 111.

[8] HAGGLUND, Bengt. História da teologia. 3. ed. Porto Alegre: Concórdia Editora, 1986, p. 224, 225.

[9] OLSON, Roger E. História da teologia cristã: 2000 anos de tradição e reformas. São Paulo: Editora Vida, 2001, p. 421.

[10] HAGGLUND, Bengt. História da teologia. 3. ed. Porto Alegre: Concórdia Editora, 1986, p. 230.

[11] McGRATH, Alister E. Teologia sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã. São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 534.

[12] FERREIRA, Franklin & MYATT, Alan. Teologia sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual. São Paulo: Vida Nova, 2007, p. 717.

[13] FERREIRA, Franklin & MYATT, Alan. Teologia sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual. São Paulo: Vida Nova, 2007, p. 717, 718.

[14] McGRATH, Alister E. Teologia sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã. São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 535.

[15] GONZALEZ, Justo L. Uma história do pensamento cristão: Da Reforma Protestante ao século 20. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, 3 v., p. 314, 315.

[16] GRENZ, Stanley J. & OLSON, Roger E. A teologia do século 20: Deus e o mundo numa era de transição. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 86, 87. 


Fonte: cristianismototal.wordpress.com



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