É verdade que muita superstição fetichista sobrevive ainda hoje, e o mundo evangélico brasileiro é o lugar onde elas, hoje em dia, mais crescem.
Como a bebida e a prostituição, as formas primitivas de idolatria são toleradas, mas não aprovadas pelas mentes “cultas”. O lugar desse tipo de idolatria na hierarquia acreditada de valores situa-se entre os mais baixos.
Como é diferente o caso das formas desenvolvidas e mais modernas de idolatria!
Essas formas mais sofisticadas e até cristãs lograram não apenas a sobrevivência, mas o mais alto grau de respeitabilidade. São recomendadas por homens de “intelecto” como substituto atualizado da religião supersticiosa e, por muitos mestres religiosos profissionais, equiparadas à adoração de Deus.
Tudo isso pode ser deplorável, mas não nos surpreende. A nossa educação desacredita as formas mais primitivas de idolatria; ao mesmo tempo, porém, desdenha, ou, na melhor das hipóteses, não toma conhecimento da espiritualidade sem fetiche e sem ídolo.
Em lugar de ídolos grotescos na base e da Divindade imanente e transcendente no topo, ela institui como objetos de admiração, fé e adoração, um panteão de idéias e ideais estritamente humanos, ainda que “teológicos”.
No meio cristão há muitos ídolos. A Bibliolatria é a mais forte e aceita forma de culto ao ídolo de papel. Mas há também o culto às doutrinas, aos conceitos teológicos, aos credos, e às personalidades carismáticas. Sem falar que a “igreja”, como mera instituição, também é uma divindade cristã.
Nos círculos acadêmico-teológicos e entre os que se jactam de uma educação superior, há poucos fetichistas e poucos devotos contemplativos, mas há os devotos entusiastas de alguma forma de idolatria teológica, doutrinária, política ou social. Esses são extremamente comuns entre nós.
As numerosas variedades de idolatria sofisticada e superior classificam-se em três categorias principais: a tecnológica, a política, e a moral ou religiosa. A idolatria tecnológica é a mais ingênua e primitiva das três, pois os respectivos devotos, como os da idolatria inferior (a primitiva, dos ídolos de pau e pedra), acreditam que sua redenção e libertação dependem de objetos materiais — nesse caso, aparelhos mecânicos. A idolatria tecnológica é a religião cujas doutrinas são promulgadas, explícita ou implicitamente, nas páginas de propaganda dos nossos jornais e revistas — a fonte, ajuntemos entre parênteses, da qual milhões de homens, mulheres e crianças nos países capitalistas extraem sua filosofia prática de vida.
Pouco menos ingênuos são os idólatras-políticos, que substituíram o culto dos aparelhos mecânicos redentores pelo culto das associações sociais e econômicas redentoras. Imponha-se o tipo certo de organização aos seres humanos, e todos os seus problemas, desde o pecado e a infelicidade, até o nacionalismo e a guerra, desaparecerão automaticamente. A maioria dos idólatras políticos é também formada de idólatras tecnológicos — apesar do fato de que essas duas pseudo-religiões são finalmente incompatíveis, visto que o progresso tecnológico, no ritmo presente, torna obsoleto qualquer plano político, por engenhoso que seja, num período não de gerações, mas de anos e, às vezes, até de meses. Além disso, o ser humano é uma criatura infelizmente dotada de quase-livre-arbítrio, e se, por uma razão qualquer, os indivíduos houverem por bem não fazer algo funcionar, nem a melhor das organizações produzirá os resultados que se pretendiam.
Já os idólatras morais, religiosos e teológicos são realistas na medida em que percebem que os aparelhos mecânicos e as organizações não bastam para garantir o triunfo da virtude e o aumento da felicidade, e que os indivíduos que compõem as sociedade e utilizam as máquinas são os árbitro que finalmente determinam se haverá decência nas relações pessoais, ordem ou desordem na sociedade. Instrumentos materiais e de organização tornam-se indispensáveis, e um bom instrumento é preferível a um mau. Mas em mãos desatentas ou maldosas o instrumento mais perfeito será ou inútil ou um meio para o mal.
Os moralistas teológicos deixam de ser realistas e cometem idolatria na medida em que adoram não a Deus, mas aos próprios ideais éticos, na medida em que tratam a virtude como fim em si mesmo, e não como condição necessária ao autoconhecimento, à relação com o próximo, e à experiência do amor de Deus — conhecimento e amor sem os quais as reais virtudes nunca se tornam perfeitas nem mesmo socialmente efetivas.
O fanatismo é idolatria, e tem em si o mau moral da idolatria. Isto é, o fanático adora alguma coisa que é a criação do próprio desejo, e, desse modo, até sua devoção por ela não passa de uma devoção aparente, pois, na verdade consiste em obrigar as partes de sua natureza ou de sua mente que ele menos aprecia a oferecerem sacrifícios ao que ele mais aprecia.
O culto moral, segundo o meu modo de ver, é a idolatria — a apresentação de alguma idéia que tem mais afinidade com a nossa mente e a sua colocação no lugar de Cristo, o único que não pode ser transformado em ídolo e inspirar idolatria, porque reúne todas as idéias da perfeição e exibe-as em sua justa harmonia e combinação.
Ora, em minha própria mente, consoante a sua tendência natural — isto é, tomando minha mente em sua melhor condição —, a verdade e a justiça seriam os ídolos que eu seguiria; e seriam ídolos porque não forneceriam todo o alimento de que a mente precisa e, ao adorá-las, a reverência, a humildade e a ternura poderiam, provavelmente, ser esquecidas. Mas o próprio Cristo reúne, ao mesmo tempo, a verdade, a justiça e todas as outras qualidades também... A mentalidade tacanha tende para a maldade nas partes assim negligenciadas.
Como fragmento de análise psicológica isso é admirável. Seu único defeito é um defeito de omissão, pois deixa de tomar em consideração os influxos da ordem eterna na ordem temporal, denominados graça ou inspiração. A graça e a inspiração são outorgadas quando o ser humano abre mão da sua vontade própria e se entrega, momento a momento, pelo recolhimento constante e pelo constante desapego, à vontade de Deus.
Ora, assim como existem graças animais e espirituais, cuja fonte é Deus, existem pseudograças humanas — por exemplo, os aumentos de força e virtude que acompanham o auto-sacrifício a alguma forma de idolatria política ou moral.
Distinguir a graça verdadeira da falsa muitas vezes é difícil, mas à proporção que as circunstâncias revelam toda a extensão de suas conseqüências sobre a alma, torna-se possível a discriminação até para observadores que não possuam dons especiais de intro-visão.
Onde a graça é autenticamente “sobrenatural”, não se consegue a melhoria de um aspecto da personalidade total à custa da atrofia ou deterioração de outra parte.
A virtude acompanhada e aprimorada pelo amor e pelo conhecimento de Deus é algo muito diferente da “virtude dos escribas e fariseus”, a qual, para o Cristo, se incluía entre os piores males morais.
A dureza, o fanatismo, a descaridade e o orgulho espiritual — tais são os subprodutos comuns do auto-aperfeiçoamento estóico por intermédio do esforço pessoal, desassistido ou assistido apenas pelas pseudograças conferidas quando o indivíduo se consagra à obtenção de um fim que não é o seu verdadeiro fim, quando a meta não é Deus, mas tão-somente uma projeção ampliada de suas próprias idéias favoritas ou excelências morais.
A adoração idólatra de valores éticos em si mesmos e por si mesmos frustra seu próprio objeto — e frustra-o não somente porque falta um desenvolvimento de conjunto, mas também, e acima de tudo, porque até as formas mais elevadas da idolatria moral eclipsam Deus e, por conseguinte, privam o idólatra do conhecimento iluminador e libertador da Verdade de Jesus.
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