Seita suspeita de escravizar seguidores em Minas é alvo da Polícia Federal
A Polícia Federal (PF) deflagrou ontem a Operação De Volta para Canaã para combater crimes de estelionato, lavagem de dinheiro, tráfico de pessoas e outros golpes praticados pela seita religiosa conhecida como “Comunidade Evangélica Jesus, a verdade marca”, que age desde 2005 em Minas, com ramificações em São Paulo e Bahia. O grupo religioso, segundo a PF, arrebanhava pessoas aproveitando da fragilidade das mesmas e as convencia a doar todos os seus bens para serem aceitas em uma espécie de “mundo paralelo”. O argumento usado era de que “tudo seria de todos”. Muitas vítimas ficavam confinadas em fazendas, dormindo em alojamentos coletivos, trabalhando em situação análoga à de escravidão, sem receber nada de salário. Os investigadores estimam que o valor dos bens recebidos em doação chegue a cerca de R$ 100 milhões.
A operação contou com 190 agentes federais e cumpriu 129 mandados judiciais em Minas. No fim da tarde, quatro líderes do grupo, que não tiveram seus nomes divulgados, haviam sido presos em flagrante. Outras 22 pessoas foram conduzidas à delegacia para prestar depoimento e liberadas em seguida. Além disso, a PF cumpriu seis mandados de busca e apreensão e 70 ordens de sequestro de bens, como fazendas, carros, imóveis e estabelecimentos comerciais. Várias contas bancárias foram bloqueadas e o valor do dinheiro está sendo levantado. As ordens judiciais foram cumpridas em Pouso Alegre, Poços de Caldas, Andrelândia, Lavras, Minduri, São Vicente de Minas e Carrancas, nas regiões Sul, Centro-Oeste e Campos das Vertentes, respectivamente. Os municípios baianos de Remanso, Marporá, Barra, Ibotirama, Cotegipe e a capital de São Paulo também foram alvos da operação.
De acordo com o coordenador da operação policial em Minas, delegado federal João Carlos Girotto, de Varginha, Sul do estado, a seita religiosa buscava pessoas em situação de fragilidade e as convencia a ingressar no grupo deles. “As vítimas eram levadas para as fazendas deles para uma doutrinação. As pessoas eram orientadas a entregar todos os seus bens, como imóveis e veículos”, conta o delegado. “Os líderes da seita estipulavam os valores das doações e o tipo de trabalho a ser feito pela pessoa, sem remuneração nenhuma, por meio de uma doutrinação psicológica”, reforça Girotto. Por enquanto, segundo ele, já foram confirmados crimes de estelionato, lavagem de dinheiro, falsidade ideológica e formação de quadrilha.
Nas fazendas, as pessoas dormiam em alojamentos coletivos. “Encontramos casais, algumas crianças, pessoas solteiras, famílias completas. O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) configurou trabalho escravo”, explica o delegado. Segundo ele, a organização criminosa é a mesma que agia em 2005 em São Vicente de Minas, no Campo das Vertentes, quando centenas de seguidores da seita começaram a chegar à cidade, vindos de Ribeirão Preto e São José do Rio Preto, interior paulista, onde tudo começou, segundo o delegado. “É a mesma quadrilha, que nunca parou de atuar”, conclui Girotto. Hoje, a seita possui mais de 6 mil adeptos em Minas, de acordo com a PF.
Em São Vicente de Minas, onde o Estado de Minas esteve em 2005, muitos moradores abriram mão de todos os seus bens para ingressar na seita. “No início, uma multidão de forasteiros invadiu a cidade e muitos permanecem até hoje. É uma situação meio estranha, bem nebulosa, uma espécie de máfia. Sabe como é isso: lavagem de dinheiro”, contou um morador, que pediu para não ser identificado, temendo retaliações.
As investigações apontaram que os seguidores desenvolviam vários tipos de trabalho nas fazendas e nas cidades. “Trabalhavam em estabelecimentos comerciais do grupo, como churrascarias, lanchonetes, postos de combustível e lojas de peças para carros”, disse o delegado Girotto. “A doutrinação era feita nas fazendas. Depois de doutrinada, a pessoa poderia ir para a cidade ou permanecer na fazenda, onde trabalhava na pecuária e em outras atividades, como plantação de café”, completa.
TRABALHO ESCRAVO Em abril de 2013, a PF deflagou operação semelhante em Minduri, na Região de Campo das Vertentes. “Esse trabalho foi específico para a PF entrar na seita e descobri como era o seu funcionamento. Em uma época, até o sexo entre casais era proibido por eles, mas hoje já foi liberado. Algumas condutas foram modificadas devido à situação”, disse Girotto.
Dos R$ 100 milhões recebidos em doação, segundo estimativa dos investigadores, parte do patrimônio foi convertida em fazendas, casas e veículos de luxo. A Operação De Volta para Canaã é resultado dos trabalhos que tiveram início em 2011 e que resultaram em uma ação conjunta da PF, Ministério do Trabalho e Emprego e o Ministério Público do Trabalho.Na ocasião, foi descoberto um esquema de exploração do trabalho humano e lavagem de dinheiro praticado por líderes religiosos. Os suspeitos podem responder por redução de pessoas à condição análoga à de escravo, tráfico de pessoas, estelionato, organização criminosa, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro.
Os advogados dos líderes da seita não foram localizados pelo Estado de Minas.
EM relatou caso em 2005
Em 2005, centenas de forasteiros começaram a chegar em cinco cidades do Campo das Vertentes e Sul de Minas. Uma força-tarefa foi formada pela Polícia Federal, Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Ministério Público e Delegacia Regional do Trabalho para investigar suspeitas de lavagem de dinheiro, sonegação fiscal e estelionato. Pessoas que entravam para a misteriosa seita religiosa viviam em situações precárias nas fazendas adquiridas pelo grupo, dormindo em alojamentos apertados e cobertos com telhas de amianto, e crianças não frequentavam as escolas. Na Fazenda Manancial, em São Vicente de Minas, eram mais de 130 pessoas, a maioria de São José do Rio Preto (SP), viviam em situações subumanas. Moradores antigos da região ficaram assustados com a invasão repentina. O mistério tomou conta das cidades. Os forasteiros não revelavam suas origens e quais as suas intenções na cidade. O Estado de Minas, à época, fez várias reportagens sobre o assunto. A Receita Federal estimou que os líderes religiosos investiram R$ 10 milhões somente em São Vicente de Minas. Em janeiro de 2006, gravações obtidas pela PF revelaram incitação a fiéis para doarem bens à seita e como funcionava o esquema de aliciamento. A PF abriu inquérito para apurar a lavagem de dinheiro. Em 2013, foi deflagrada a Operação Canaã, que teve sequência ontem. (PF).
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