Cristianismo
O sentido mais profundo de ser evangélico
Me converti na adolescência. Engatinhei na fé encantado com o desprendimento dos crentes. Na escola dominical, não entendia porque muitos doavam suas manhãs para darem aula de Bíblia a jovens como eu – sem qualquer berço religioso. O que os motivava? Guardo afeto por um presbítero que passava de carro por minha casa para me levar ao culto. Sentado no banco traseiro, notava um carinho especial por mim. Nunca alcancei entender, completamente, mais de 40 pessoas gastarem noites da semana ensaiando para o coral; para cantar dois hinos no domingo à noite treinavam por horas. As catequeses para crianças nas favelas sempre me deixaram boquiaberto. Jovens abriam mão das tardes de domingo para ensinar em comunidades carentes.
Anos depois, passei a me sentir privilegiado por pertencer ao movimento pentecostal. Fui iniciado nesse mundo através das cruzadas evangelísticas. Há poucas décadas, tais cultos ao ar livre eram comuns. O palanque, feito com um tablado de madeira e apoiado sobre tambores de óleo vazios, mal cabia o grupo musical. Os hinos chamavam a atenção do bairro e estimulavam a fé. As letras convidavam os desvalidos a confiar em Deus: Conta para Jesus onde é a tua dor. Ele te ajuda a carregar a Cruz. Com insistência ora. Que tu vais vencer. O que tu precisas, conta para Jesus. Nessas campanhas, o pregador articulava um sermão veemente. Prometia que no final faria duas orações. A primeira, para pessoas que desejavam se converter. A segunda, pelos enfermos. Não poucas vezes, eu saía extasiado com a intrepidez dos jovens evangelistas.
Tais lembranças, entretanto, não me impedem de perceber as idiossincrasias do movimento, que se apequenou. O pentecostalismo se travestiu de neopentecostalismo. A teologia da prosperidade vingou e a teologia da missão integral minguou. O cultos domiciliares foram substituídos por televangelistas. Sobram poucas razões para ter orgulho do que se tornou o movimento evangélico.
Precisei me distanciar do movimento – na verdade, já me despedi algumas vezes – para ter condições de apontar suas distorções, imaturidades e desvios. Olho para trás e entendo alguns porquês da decadência. Estávamos presos ao fundamentalismo norte-americano e nem sequer percebíamos. Copiávamos a moralidade gringa; era proibido beber vinho, ir ao cinema e até dançar a valsa de formatura. Os livros que nos instruíam não passavam de traduções mal feitas do que fazia sucesso nos Estados Unidos. Em alguns redutos mais conservadores, missionários davam ordens. Já como pastor, fui convidados para uma conferência. Eu partilharia o púlpito com um famoso pregador americano. A maneira como trataram o estrangeiro e revelou bem o viralatismo: ele foi hospedado em hotel cinco estrelas e os nacionais ficaram em hotel, categoria pensão. Para piorar, o conteúdo da palestra evidenciou a mentalidade colonialista do conferencista: embora teólogos estivessem no auditório, ele ensinou para adolescentes.
Os evangélicos brasileiros constroem a sua identidade sem preocupação histórica. Em um processo sincrético bem avançado, o neopentecostalismo mostra pouco apreço pela tradição – traditio – que os antecede. O pouco reconhecimento pelos séculos de tensão que marcaram a igreja, com idas e vindas, os torna refratários a bizarrices. Igrejas se multiplicam nos arredores das grandes cidades movidas mais por conquista de um nicho do que por um ideal. Desprovidos de projetos solidários, sem parceria com iniciativas transformadoras da realidade, novos líderes abrem igrejas que convivem com a injustiça. Cismático, o movimento se expande, anarquicamente, na lógica do mercado.
Os poucos anos de existência do movimento talvez expliquem sua imaturidade. A presença evangélica no Brasil ainda não tem 200 anos. Sarah e Robert Kalley, o primeiro casal protestante a ficar no Brasil em caráter permanente, chegaram em 10 de maio de 1855. Talvez sejam necessários muitos outros deslizes e tolices até que o movimento amadureça.
Todavia, dá para notar sinais de esperança. Se o movimento perde referência com a ética protestante, por outro lado, consegue alguns avanços: o sacerdócio universal de todos os crentes, por exemplo. As igrejas dependem primordialmente de leigos. Enquanto caciques denominacionais se consomem com politicagem, anônimos sobem morros, embrenham-se por igarapés e atravessam sertões. Eu participei de cultos familiares conduzidos na calçada com a mesa da cozinha coberta com toalha e buquê de flores artificiais servindo de púlpito. Já preguei com microfone dando choque. Várias vezes ouvi minha voz distorcida por amplificador e corneta de som de péssima qualidade. Em muitas ocasiões, sem instrumento musical e desafinados, cantamos hinos antigos.
Na redondeza das grandes cidades ainda é possível ver crentes caminhando pelos acostamentos das estradas. Fácil identificá-los: o pai, de paletó e gravata, carrega a Bíblia contra o peito e a mulher, de saia longa, segue com pelo menos dois filhos. A igreja lhes confere uma dignidade que as estruturas sociais iníquas escondem. A religião os torna altivos.
Qualquer igreja é construção social que reflete a cultura onde foi inserida. Eis a razão do movimento evangélico espalhar, ao mesmo tempo, beleza e imperfeição. Nessa complexidade histórica uma atitude profética importa muito. É preciso reconhecer defeitos e celebrar beleza. Por isso continuo fiel à minha vocação. Trabalho em busca de um caminho que melhor reflita o reino de Deus. Mesmo que não me identifique com o que se tornou o movimento evangélico, desejo compreender – e viver – o significado mais profundo de ser evangélico.
Fonte: http://www.ricardogondim.com.br/
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