Cristianismo
Enoque morreu?
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Este capítulo faz parte da obra: “Exegese de Textos Difíceis da Bíblia”, ainda em construção.
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Se eu tivesse escrito este livro até pouco tempo atrás, não teria escrito este capítulo. Quase ninguém questionava o fato de que Enoque foi transladado vivo ao Céu e que, por isso, não passou pela morte. No entanto, tem crescido muito nos últimos tempos a teoria de que Enoque foi transportado a algum outro local da terra, onde viveu por mais algum tempo até morrer. Analisaremos os dois lados da moeda a fim de examinar se eles têm razão na crítica.
Linha 1 | Linha 2 |
Enoque morreu | Enoque não morreu |
A Linha 1 possui evidências bastante fortes de que Enoque não morreu. O texto que mais claramente indica isso é o que diz:
“E andou Enoque com Deus; e não apareceu mais, porquanto Deus o tomou para si” (Gênesis 5:24)
Se Deus tomou Enoque para si (כִּי לָקַח אֹתוֹ), é porque Enoque está na presença dEle, e não que Deus tenha “matado” Enoque, ou o mandado para alguma região remota do planeta. A evidência de que Enoque não passou pela morte fica ainda mais forte quando comparamos a descrição a respeito dele com a descrição que é feita a respeito de todos os demais personagens citados no mesmo capítulo. A descrição feita sobre Adão, por exemplo, era a fórmula-padrão, que continha sempre: (a) a idade que viveu sobre a terra; (b) os filhos que gerou; (c) a morte.
“E foram os dias de Adão, depois que gerou a Sete, oitocentos anos, e gerou filhos e filhas. E foram todos os dias que Adão viveu, novecentos e trinta anos, e morreu” (Gênesis 5:4-5)
Todos os outros citados no capítulo seguem o mesmo esquema, que inclui a morte, como podemos ver na tabela abaixo.
Personagem | Viveu | Depois |
Adão | 930 anos | Morreu |
Sete | 905 anos | Morreu |
Enos | 910 anos | Morreu |
Cainã | 830 anos | Morreu |
Maalaleel | 895 anos | Morreu |
Jerede | 962 anos | Morreu |
Enoque | 365 anos | Deus o tomou para si |
Matusalém | 969 anos | Morreu |
Lameque | 777 anos | Morreu |
Dado o evidente contraste entre Enoque e os demais personagens bíblicos registrados no contexto, torna-se inevitável a conclusão de que, diferentemente de todos os outros, com ele ocorreu algo em especial: ele não morreu! O fato de Deus ter tomado Enoque para si foi considerado o oposto à morte. Além disso, há um detalhe que não deixa dúvidas de que Enoque foi para o Céu ao invés de ter sido lançado a outro lugar da terra:
“E andou Enoque com Deus, depois que gerou a Matusalém, trezentos anos, e gerou filhos e filhas. E foram todos os dias de Enoque trezentos e sessenta e cinco anos. E andou Enoque com Deus; e não apareceu mais, porquanto Deus para si o tomou” (Gênesis 5:22-24)
Note que o texto diz claramente que 365 anos foram todos os dias de Enoque na terra. Se esse tempo de 365 anos foi o total de dias em que Enoque viveu, então é absurdo presumir que ele só foi transladado a outra parte do planeta para viver ali mais vários anos até morrer. Se este tivesse sido o caso, 365 não teria sido o total de anos da vida dele, mas apenas de uma parte da vida dele, e Enoque teria vivido muito mais depois disso. O escritor bíblico inspirado não teria dito que “todos os dias de Enoque” foram 365 anos, mas sim que depois de ter alcançado essa idade ele foi transportado a outra parte da terra, onde viveu mais algum tempo. Portanto, a evidência parece bastante esmagadora para o lado de que Enoque não morreu.
Enoque só volta a ser mencionado na Bíblia em Hebreus, onde o autor declara:
“Pela fé Enoque foi trasladado para não ver a morte, e não foi achado, porque Deus o trasladara; visto como antes da sua trasladação alcançou testemunho de que agradara a Deus” (Hebreus 11:5)
Os advogados da Linha 1 contestam, afirmando que Filipe foi transladado para outro lugar da terra (At.8:39), e que o mesmo teria ocorrido com Enoque. Contudo, a diferença entre ambos os casos é imensa. Note com que naturalidade o escritor descreve o arrebatamento terreno de Filipe:
“E mandou parar o carro, e desceram ambos à água, tanto Filipe como o eunuco, e o batizou. E, quando saíram da água, o Espírito do Senhor arrebatou a Filipe, e não o viu mais o eunuco; e, jubiloso, continuou o seu caminho. E Filipe se achou em Azoto e, indo passando, anunciava o evangelho em todas as cidades, até que chegou a Cesareia” (Atos 8:38-40)
Ao que parece, a transladação de Filipe não foi digna de muita ênfase. O escritor simplesmente diz que Filipe foi arrebatado e apareceu em Azoto, onde continuou pregando o evangelho. O contraste com o arrebatamento de Enoque, cuja ênfase é incomparavelmente superior, já deveria ser o bastante para inferir que o arrebatamento de Enoque não foi para uma outra parte da terra, mas para o Céu. É isso o que explica tamanha discrepância entre um relato e outro.
Com Filipe, o arrebatamento foi apenas um detalhe mencionado de passagem. Com Enoque, o arrebatamento foi o foco da vida dele. Não é dito que Filipe “não viu a morte” em função de seu arrebatamento, mas com Enoque sim. Não é dito que Filipe “não foi achado”, mas com Enoque sim. Não é dito que Filipe foi arrebatado por ter agradado a Deus, mas com Enoque sim. Claramente, o arrebatamento de Enoque é visto como uma espécie de recompensa inusitada que o distinguia de todos os demais, o que só tem sentido se Deus de fato o tomou para si (Gn.5:24).
Os adeptos da Linha 1 argumentam que Deus transladou Enoque para outro lugar da terra porque ele estava sendo perseguido pelos ímpios da época, e então Deus teria salvado Enoque de ser assassinado, e seria essa a razão pela qual Enoque não viu a morte. O problema com essa teoria é que ela não tem a mínima base. Embora alguns usem um trecho de Judas, não há nada no trecho citado que diga que Enoque sofria algum sério risco de morte:
“E destes profetizou também Enoque, o sétimo depois de Adão, dizendo: Eis que é vindo o Senhor com milhares de seus santos; para fazer juízo contra todos e condenar dentre eles todos os ímpios, por todas as suas obras de impiedade, que impiamente cometeram, e por todas as duras palavras que ímpios pecadores disseram contra ele” (Judas 1:14-15)
Enoque não estava fazendo mais do que todos os profetas do Antigo Testamento faziam constantemente, predizendo o juízo de Deus contra os ímpios. Não há nada no texto que sugira que Enoque estava para ser assassinado por alguém. O livro de Jasar, que é citado duas vezes na Bíblia (2Sm.1:18; Js.10:13), descreve a vida de Enoque de uma forma totalmente oposta, onde Enoque não apenas pregava livremente, como também reinava sobre todos da época:
“E o espírito do Senhor estava sobre Enoque, e ele ensinou a todos os seus homens a sabedoria do Senhor e seus caminhos e os filhos dos homens serviram ao Senhor todos os dias de Enoque, e eles vinham para ouvir sua sabedoria. E todos os reis dos filhos dos homens, primeiros e últimos, juntamente com os seus príncipes e juízes, vinham a Enoque quando ouviram falar da sua sabedoria, e eles curvavam-se a ele, e eles também exigiram de Enoque reinar sobre eles, e ele consentiu. E eles reuniram-se todos, cento e trinta Reis e príncipes, e eles fizeram Enoque rei sobre eles e eles andaram todos sob seu comando e poder. E Enoque lhes ensinou sabedoria, conhecimento e os caminhos do Senhor; e ele trouxe paz entre eles, e a paz foi por toda a terra durante a vida de Enoque. E Enoque reinou sobre os filhos dos homens, trezentos e quarenta e três anos, e ele fez Justiça, e justiça com todos os seus povos, e ele levou-os nos caminhos do Senhor”
O mesmo livro diz ainda que Enoque foi arrebatado ao Céu, direto para a presença de Deus. Semelhantemente, o livro apócrifo de Eclesiástico afirma que Enoque “foi transportado ao paraíso, para excitar as nações à penitência”. A ideia de que Enoque foi apenas transladado a uma outra parte da terra para ali viver por mais algum tempo e então morrer simplesmente não existe na literatura judaica, e é uma tese moderníssima.
Portanto, não há base nem bíblica e nem histórica para inferir que Enoque estivesse sendo “perseguido” e que por isso Deus tivesse precisado mandá-lo para outra parte do planeta, onde viveria isolado pelo resto de sua vida. Isso sequer tem sentido, pois ninguém é capaz de viver sozinho por tanto tempo, além de ser uma enorme crueldade para com Enoque, visto que o homem foi feito para viver em comunidade, em comunhão com as outras pessoas. Ninguém consegue viver absolutamente sozinho, para o resto da vida. Deus fez o homem para viver em sociedade, não em isolamento.
Por fim, os proponentes da Linha 1 argumentam que o autor de Hebreus, após citar Enoque junto a vários outros personagens bíblicos de renome, disse que “todos estes morreram”, o que seria a prova de que Enoque morreu:
“Todos estes morreram na fé, sem terem recebido as promessas; mas vendo-as de longe, e crendo-as e abraçando-as, confessaram que eram estrangeiros e peregrinos na terra” (Hebreus 11:13)
No entanto, à luz de todas as evidências esmagadoras de que Enoque não morreu, este texto deve ser entendido sob a ótica da generalização. Isto é, pelo fato de que todos os outros citados morreram, o autor usou o “todos”, e Enoque é apenas uma exceção à regra geral. Casos assim não são incomuns na Bíblia. Marcos diz que alguns discípulos se incomodaram com o “desperdício de perfume” (Mc.14:4), mas João afirma que quem reclamou foi apenas um dos discípulos, Judas (Jo.12:4-6). Quando o diabo levou Jesus a um monte muito alto, lhe mostrou “todos os reinos da terra” (Mt.4:8), mas é claro que não se podia ver literalmente todos os reinos do mundo nem mesmo do monte mais alto do planeta. Jesus viu muitos reinos, e o autor generalizou com o todos.
Em Mateus 26:31, Jesus disse que todos os discípulos o abandonariam. No entanto, houve um discípulo, João, que o seguiu até o pé da cruz (Jo.19:26). Se há ocasiões em que efetivamente o “todos” não se aplica a literalmente todos, mas a uma grande maioria dos mencionados, então Hebreus 11:13 pode perfeitamente se aplicar ao caso, ainda mais com tantas evidências de que, realmente, Enoque não passou pela morte. O foco sequer estava centrado no fato de terem morrido ou não, mas sim no fato de terem morrido na fé. Enoque não morreu, mas quando foi arrebatado e deixou este mundo certamente esteve na fé, assim como todos os demais (que morreram). Portanto, o mais plausível é que Enoque, realmente, foi tomado para a presença de Deus (Gn.5:24), de forma que não viu a morte (Hb.11:5).
Por Cristo e por Seu Reino,
Lucas Banzoli (www.lucasbanzoli.com)
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