A magia oculta da novela ‘Os Dez Mandamentos’
Cristianismo

A magia oculta da novela ‘Os Dez Mandamentos’


 
Que feitiço esconde a telenovela brasileira Os Dez Mandamentos, da TV Record? Desde março, ela encanta milhões de telespectadores e chegou a desbancar em audiência a gigante TV Globo, algo que não ocorria havia mais de 40 anos.
Quem teria imaginado que uma história baseada em quatro livros da Bíblia judaica (Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) poderia ser capaz de conseguir em alguns momentos uma audiência maior que os jogos da seleção brasileira nas eliminatórias para a Copa de 2018 ou que o Jornal Nacional, da Globo, imbatível em termos de visibilidade por abraçar todas as classes sociais, dos milionários à classe C?
São perguntas que se fazem, perplexos, os autores de novelas e empresários da cultura televisiva, que nunca teriam imaginado um sucesso tão inesperado da primeira telenovela brasileira, e possivelmente mundial, baseada na Bíblia.
A resposta não é fácil, porque talvez se trate de um sucesso forjado por vários fatores que tiveram um encontro feliz e inesperado.
Há quem pretenda fundamentar esse sucesso da telenovela no fato de ser exibida numa rede evangélica, cujo público acolhe com aplausos um tema bíblico como fundo da trama.
Ao mesmo tempo, esse público, crítico com as criações da Globo – consideradas excessivamente liberais em matéria de sexo e outros assuntos que são polêmicos ou tabus para os religiosos –, talvez possa assistir a Os Dez Mandamentos com os filhos sem se escandalizar.
Poderia ser, de fato, que certo conservadorismo evangélico seja um dos fatores para o sucesso. Mas, é pouco para competir e até desbancar em alguns capítulos o inexpugnável castelo de audiência da Globo, com uma experiência de meio século de telenovelas vendidas para o mundo inteiro, sem restrições econômicas que lhe impeçam de contratar os melhores autores e atores.
Talvez o feitiço de Os Dez Mandamentos, que alcança a um público mais amplo que o das igrejas evangélicas, consista em boa parte de algo que ninguém teria imaginado: a magia escondida nas incríveis e apaixonantes histórias contidas na Bíblia, o único livro declarado Patrimônio da Humanidade, que se permite o luxo de se chamar emblematicamente “o Livro” – pois é isso que “a Bíblia” significa em grego.
É a publicação mais vendida no mundo, com cinco bilhões de exemplares, a única traduzida para mais de 2.000 línguas e dialetos, o primeiro livro publicado quando Gutemberg inventou a prensa, a primeira obra da história considerada mais do que um livro e uma das mais citadas na moderna literatura do grande escritor argentino Jorge Luis Borges, que chegou a dizer que depois dela todos os outros livros são versões dela.
A Bíblica, que começou a ser escrita há mais de 3.000 anos por autores desconhecidos, abrange todos os gêneros literários e encerra em seu seio todos os ingredientes da melhor literatura mundial: intriga, erotismo, mistério, violência, traições, ternuras e crueldades, anjos e demônios.
 
A Bíblia e suas histórias, como a de Moisés encenada na novela (que narra a libertação do seu povo judaico, então submetido à escravidão pelos egípcios) é, segundo os especialistas, a história da humanidade, de cada família e de cada um de nós, com suas luzes e sombras, virtudes e pecados, desilusões e esperanças, traições e lealdades.
É o grande romance da humanidade, com suas derrotas e vitórias, seu desejo de libertação e a constatação de que a vida não é mais do que um punhado de areia que escorre com assombrosa rapidez pelas frestas do tempo. Une eternidade e fugacidade.
A Bíblia é o único livro que é tão laico como religioso, porque desnuda a fragilidade humana, sua fé e seu ateísmo, suas dúvidas e certezas. São não uma, mas milhares de histórias que intrigam e apaixonam.
Costuma-se dizer que as novelas da TV Globo refletem a modernidade da nossa sociedade, o hoje, ao passo que Os Dez Mandamentos, da Record, seria a história do passado, uma obra de época. Isso implica ignorar que, como nas famosas matrioscas russas, na Bíblia se encaixa o que há de mais antigo e de mais moderno na História humana.
Existe, com efeito, algo mais antigo e ao mesmo tempo mais atual e moderno que a história de Moisés com a libertação do seu povo? Que o grito dos profetas alertando aos homens sobre o perigo que correm se ignorarem o mundo dos pobres e explorados, se perderem o respeito pelo mistério e se continuarem escravizando outros povos e inventando guerras?
As vistosas e repugnantes pragas que Javé enviava contra os súditos do Faraó, que se negava a libertar o povo de Moisés da escravidão, não nos recordam os perigos que corre hoje a humanidade, ameaçada por pragas bem mais perigosas, como a bomba atômica, o terrorismo internacional ou a transformação da Terra em um deserto?
Não se devem tirar os méritos de um roteiro como o de Os Dez Mandamentos, bem escrito e urdido, das suas magníficas encenações, dos seus grandes atores e dos meios econômicos que não foram poupados em sua criação. E nem da sua pitada de sutil erotismo.
Entretanto, talvez o verdadeiro segredo do seu sucesso seja que a história bíblica tem a capacidade de saber falar ao homem de hoje, com símbolos e mitos ancestrais, sobre os problemas mais urgentes de nosso tempo, como por exemplo a necessidade de fustigar a solidão com o pertencimento a um povo fiel a suas raízes e identidade, a suas tradições, onde ninguém deva se sentir escravo de ninguém nem superior a ninguém por ideologia, sexo, cor ou religião.
Os Dez Mandamentos que Moisés recebeu de Deus, escritos em duas pedras, nos pedem, entre outras coisas, “não matar”, “não cobiçar a mulher do próximo”, “não adorar os ídolos” (consumismo?), “não roubar”, “não mentir” e “respeitar pai e mãe”.
Você acha isso pouco moderno no mundo de hoje e no Brasil da violência, da corrupção, das traições e das mentiras, sobretudo políticas?
Em um trabalho acadêmico, alunos da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) discutiram quais mandamentos anulariam ou corrigiriam hoje, e quais acrescentariam. Resultado? Os alunos retocariam aqueles relativos ao sexo e acrescentariam o da “defesa da Terra”. Todos os outros, deixariam como Deus os entregou a Moisés.
A Bíblia, tão antiga, continua sendo mais moderna que muitas novelas de hoje.
Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/10/20/opinion/1445373370_580128.html



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